O Centro de Curitiba

No Centro, o coração do empreendedorismo de Curitiba

Nelly Soh, da Soh Cabelos: negócio representou o início de uma nova vida.

Aos 90 anos, Elair Alzira Goncalves Pereira vai cedo ao Centro para erguer, todas as manhãs, as portas basculantes da Optica América, mais antiga do ramo em atividade no Paraná, na esquina da Praça Tiradentes com a rua Cândido Lopes. A poucos metros dali, do outro lado da praça, a camaronesa Nelly Magne Soh prospera com o recém-inaugurado salão especializado em tranças, entrelaces e penteados afros. Além do espírito empreendedor e da disposição para o trabalho, essas duas mulheres têm em comum uma grande paixão pelo Centro de Curitiba, região que escolheram para fixar seus estabelecimentos. Também, pudera: o marco zero de Curitiba é o coração do empreendedorismo da capital.

Foi na Praça Tiradentes que a cidade começou a ser povoada, por volta de 1650. Se no início eram apenas casas, alguns prédios públicos e uma igreja, também foi ali que surgiram os primeiros comércios em meio à paisagem ainda bastante rural. Em 1866, o boticário alemão Augusto Stellfeld fundou no logradouro a primeira farmácia de Curitiba. Assim como ele, outros imigrantes passaram a se estabelecer na região no fim do Século 19 e iniciar suas atividades econômicas – como a Fundição Mueller (1878) e a Casa Schmidt (1892).

De lá pra cá, a explosão demográfica e econômica colocou Curitiba na condição de metrópole, e seu Centro se transformou, orgânica e naturalmente, no local onde o empreendedorismo floresceu com maior vigor. Hoje, a intensa atividade econômica da região é resultado da resistência e da vitalidade dos empreendedores curitibanos.

Um ótimo retrato desse cenário aparece no mais recente Caderno de Planos Regionais de Curitiba do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (Ippuc), de 2021: a Regional da Matriz de Curitiba (que inclui também bairros vizinhos ao Centro, como São Francisco, Centro Cívico, Batel e Alto da XV, entre outros) é a campeã disparada em número de estabelecimentos: 72.549 – aí incluindo indústria, comércio e serviços. Somente no Centro, são 25.772. Em sua grande maioria, pequenos negócios – e cada um deles com uma boa história pra contar.

RESISTÊNCIA – Uma grande marca do Centro são os comércios tradicionais, que resistem ao tempo e aos modismos.

A Optica America é um destes casos: foi fundada em janeiro de 1919, na rua XV de Novembro. E boa parte dessa história foi acompanhada muito de perto pela dona Elair Alzira Goncalves Pereira — ela começou a trabalhar lá logo aos 15 anos de idade, em 1948. Mais tarde, junto com o futuro marido Amauri, comprou o estabelecimento e mudaram para a galeria Tobias de Macedo, onde está até hoje. Em 2021, Elair realizou um sonho antigo e abriu uma filial do outro lado da praça, na esquina com a Cândido Lopes, debaixo do Edifício Tiradentes. Agora, o filho Amauri Junior toca a matriz da galeria Tobias, enquanto ela, mesmo com seus 90 anos, cuida da nova loja. Aposentadoria, nem pensar: “Vou trabalhar até enquanto tiver forças e vontade”, diz.

Dona Elair: aos 90 anos, trabalha diariamente na ótica mais antiga do Paraná em atividade. Aposentadoria, nem pensar.

Outro exemplo é o Bazar Glória, que está há 60 anos na Travessa Tobias de Macedo, 67 — hoje tocado pelas simpáticas irmãs Joseli e Josilene. A casa foi fundada em 1962 por seus pais, João e Flora Augusta Malc, que se conheceram trabalhando no antigo mercado Demeterco da Praça Tiradentes. Ali se encontra absolutamente de tudo, do mais vulgar abridor de latas às maiores panelas que podem existir, passando por filtros de barro, cuias de chimarrão e até cuscuzeiras — que, pasmem, são muito procuradas, especialmente pelos nordestinos que vivem em Curitiba. Além das utilidades domésticas, há uma sessão de sacarias, criada pela dona Flora há uns 20 anos. Tem panos de todos os tipos, toalhas e uniformes para cozinheiras e cozinheiros.

A loja mantém traços dos tempos em que foi inaugurada, como o piso original belíssimo e o jeitão de bazar, fazendo jus ao nome. Quando os fundadores se aposentaram, Joseli tomou a frente do negócio e conta com a ajuda da Josilene no atendimento. Coisa rara hoje em dia, quando os filhos optam por outras carreiras e o negócio da família acaba fechando as portas.

A tradição também está na comida. O melhor pão d’água – ou “pão bundinha”– de Curitiba e quiçá do Brasil é feito há 46 anos na rua José Loureiro, 17 – no olho do Centrão, entre as praças Zacarias, Rui Barbosa e Carlos Gomes. A panificadora Camponesa foi fundada em 1976 pelo português Antônio Garcia Matias, falecido em 2017, e hoje é tocada pela esposa Ana Maria e o sobrinho Antonio com o mesmo padrão de qualidade e atendimento.

A casa tem itens fabulosos, como os baguetinhos recheados e o pão de minuto. Mas o carro-chefe ainda é mesmo o pão d’água, que sai às centenas em fornadas corridas a partir das 7:30. Conta-se que esse pão “bundinha” até os anos 1980s era o principal, e às vezes o único, – produto vendido nas padarias da cidade, e aos poucos foi sumindo das prateleiras (mais ou menos o mesmo processo ocorrido com os cachorros pequineses), em detrimento do pão francês, croissants e outras novidades que foram chegando. Na Camponesa, porém, permaneceu firme e forte, saciando gerações.

COMEÇAR DE NOVO – O Centro também é o território de quem viu no empreendedorismo a chance de recomeçar a vida. Nelly Magne Soh nasceu em Bafoussam, cidade da República dos Camarões com 240 mil habitantes. Há 12 anos decidiu vir tentar a vida no Brasil. A primeira parada foi no Rio, onde ficou por 3 anos; depois, veio para Curitiba “atrás de oportunidades e qualidade de vida”. Formou-se em gastronomia e hotelaria pelo Centro Europeu, mas na hora de ir ao mercado sentiu na pele o preconceito: “Tive dificuldades por ser negra e estrangeira”, disse a’O CENTRO.

O negócio foi ir à luta, e foi no próprio preconceito que encontrou um caminho: ali na região do Guadalupe, abriu a Anni Flor, salão especializado em tranças, entrelaces e penteados afros. Com o tempo, o negócio foi ganhando corpo. “Graças a muitos africanos migrantes que chegaram, à internet, e a celebridades como a Taís Araújo que estão exibindo suas tranças”, comemora. Há 10 meses, mudou o ponto para a Praça Tiradentes, e adotou o nome da família para batizar a nova loja: “Soh Cabelos”. “Estou feliz aqui, por incrível que pareça é super tranquilo, em 10 meses nunca vi e nem soube de nenhum assalto ou problema”, revela.

Muitas histórias de empreendedores do Centro de Curitiba passam, também, pela sobrevivência à pandemia. Com a tabacaria Be Happy, não foi diferente.

No final de 2020, a Cris e o Felipe Dal Soto resolveram empreender. Certa noite, foram a uma tabacaria no bairro Xaxim e se surpreenderam com o movimento e a quantidade de produtos adquiridos pelos clientes; daí veio o estalo: esse seria um bom ramo de negócio. Após muito pesquisar, conheceram a Be Happy – rede surgida em Volta Redonda inspirada nas famosas head shops de Nova York. O local escolhido foi um espaço embaixo do famoso casarão na Praça Osório onde viveu o ex-governador Bento Munhoz da Rocha, endereço histórico da cidade. Exatamente no dia da inauguração, 12 de março de 2021, o município decretou a bandeira vermelha. Tensão total para quem acabara de colocar todas as suas energias – e economias – num negócio de rua.

Cris e Felipe, da Be Happy: a aposta no ramo da tabacaria deu muito certo.

Mas a pandemia passou e o negócio não só se consolidou como cresceu — hoje já são mais duas lojas, uma em Santa Felicidade e outra também no Centro, na Marechal Deodoro. E não é exagero dizer que muito desse sucesso se deve à forma como os “Sotos” tocam o negócio, acolhendo e cativando a clientela. A tabacaria também vende chope, cervejas e quentão, e as mesas na calçada transformaram o local num movimentado boullevard.

Em fevereiro, a Be Happy participou do Hempreende, evento focado na cultura canábica. O sucesso foi tanto que foram parar na manchete do jornal Bem Paraná — edição que fazem questão de manter no balcão, à vista dos clientes. “Nossas bandeiras são a descriminalização, a redução de danos, a conscientização e a educação sobre o tema”, explicou Cris a’O CENTRO, entre um atendimento e outro – durante a entrevista, pelo menos 10 clientes entraram na loja.

NOVA CARREIRA – Quando em 2018 a advogada Heloisa e o fisioterapeuta Rodrigo resolveram trocar suas carreiras e mudar de vida, escolheram uma bela casa construída em 1962 no alto da rua Ermelino de Leão. Os parentes se preocuparam: no Centro, e com um muro tão baixo? Pois é. Para lá se mudaram, montaram os quartos, instalaram uma cozinha, decoraram o saguão, e em julho de 2019 inauguravam o Hostel Garibaldi, pousada com 6 quartos (coletivos, individuais e um quarto família) e capacidade para 24 hóspedes.

Rodrigo e Heloísa, do Hostel Garibaldi.

Com o negócio prestes a completar 4 anos, o casal nunca enfrentou problemas por morar e trabalhar no Centro e viu o movimento se consolidar. “Curitiba tem recebido muitos turistas, e nos feriados a casa lota”, contou Heloisa a’O CENTRO. Boa parte vem de São Paulo e Floripa, mas também muitos estrangeiros da América do Sul e da Europa. Tantas são as boas avaliações que já foram premiados entre os 60 melhores anfitriões do mundo pela plataforma World Packers.

Mas não foi tudo sempre exatamente fácil — no meio da nova aventura, veio a pandemia. Quem é empreendedor sabe: além de muito trabalho, é preciso ser criativo – e aí a dupla aproveitou a falta de turistas para alugar os quartos por períodos maiores. Nessa, quem ficou morando lá por um ano foi o Robert Amorim, o popular Beto Batata (conhecido chef curitibano). Foi ele quem ensinou ao casal os segredos da melhor batata suíça do Brasil, e a Batata do Garibaldi acabou se transformando numa importante fonte de renda para manter os negócios.

MINHA EMPRESA, MEU EMPREGO – No Centro também estão empreendedores individuais, especialmente prestadores de serviço que mantém ofícios hoje quase extintos. É o caso do último “lambe-lambe” da cidade, o Rogério Bueno, que tem seu ganha-pão na Foto Rápido, uma banquinha de fotografias bem no meio da Praça Carlos Gomes. Em tempo de fotografia digital e smartphones, esses estabelecimentos foram derrubados ou transformados em barraquinhas de sorvete. Mas Rogério decidiu manter o negócio que era do sogro quando ele se aposentou, em 2006, e hoje vê que fez a escolha certa: as fotos 3×4 para documentos ainda têm muita procura — são cerca de 30 a 40 fotos por dia, vendidas a R$ 20 o pacote com oito cópias. “Pretendo me aposentar aqui”, diz.

Rogério, o último “lambe-lambe” de Curitiba: banquinha de fotos 3×4 movimenta a Praça Carlos Gomes.

No número 19 da rua Amintas de Barros, sapatos, tênis, botas, botinas, sandálias, chinelos, sapatilhas e cintos ganham vida extra com os reparos e reformas do Noel. Desde 1982, sempre no Centro de Curitiba, Noel Jardim de Almeida dedica-se ao ofício de sapateiro. O artesão começou na Saldanha Marinho e há 15 anos atende na pequena portinha com vista para o Teatro Guaíra. Além dos consertos, a Sapataria Almeida oferece cadarços, palmilhas, tiras para havaianas, entre outros apetrechos para um melhor e mais confortável caminhar. Com uma clientela fiel, incluindo bailarinas e bailarinos do Ballet Guaíra, Noel resiste na profissão ancestral.

“Cada vez temos menos sapateiros, mas sigo atendendo muita gente. A turma gosta do meu trabalho e sempre está me indicando”, conta Noel.

O coração do empreendedorismo, realmente, está no Centro. E pulsa cada vez mais forte.

HEROS SCHWINDEN E EDU AGUIAR | O CENTRO

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